Expectativas versus realidade
A decisão inicial de se recuperar de um transtorno alimentar vem com um monte de trabalho mental. É preciso muita coragem, e causa grande ansiedade, dizer, pela primeira vez, "Eu vou me recuperar". Ao longo do processo de recuperação, esta decisão tem de ser feita uma e outra vez mais, às vezes várias vezes ao dia. Mas o que a maioria das pessoas não percebe, pessoas que nunca tiveram um transtorno alimentar, e o que torna tão difícil entender por que tantas pessoas vão contra a recuperação, é o fato de que a recuperação e seguimento através dela são realmente um salto de fé.
Parte do que torna a recuperação tão assustadora é não saber para onde nos levará. Para alguém com um transtorno alimentar, esse modo de vida, os comportamentos doentes e pensamentos, são a única coisa que conhecem: a única maneira de existir. Em certo sentido, a ideia da recuperação é muito semelhante à ideia da morte. Quando pensamos sobre a morte pela primeira vez, quando somos novos e percebemos que a vida não é para sempre, ficamos confusos e assustados. O que acontece depois? Qual é a sensação? Vamos esquecer tudo? Nossa vida é em vão? Não saber o que acontece a seguir é assustador.
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Fonte: stay-str0ng-f0r-mee @ Tumblr |
Como não há uma única resposta certa para essas perguntas, vivemos dia após dia tentando acreditar nas respostas que criamos ou nas respostas que nos ensinaram. Da mesma forma, temos a recuperação: você cria suas respostas, uma imagem em sua mente, e essa imagem, essa ideia é o que mantém você indo. É aí que você mantém suas esperanças. Às vezes, no entanto, tudo se torna especialmente difícil e nós perdemos de vista essa esperança. É quando ficamos presos, quando nos sentimos presos, quando não sabemos o que fazer, porque nada faz sentido. As coisas não estão acontecendo da maneira que você imaginou. Você começa a duvidar de tudo e a ansiedade toma conta, sem piedade.
Estou realmente me recuperando? Estou realmente doente? As coisas estão mudando? Realmente tenho que mudar? Vale a pena o esforço? Será que vai parar de doer um dia? Todas as expectativas que você tinha antes de sua recuperação começar, todas as promessas que as pessoas fizeram, que você viveria uma vida normal, que seria feliz, que não se odiaria mais... Está demorando muito. Não está acontecendo. Era tudo vazio? As coisas vão realmente acontecer? Estou fazendo errado? Você quer desistir, porque nada faz mais sentido. Você não quer mais se recuperar. A recuperação dói. Você duvida de si mesmo, de suas escolhas, de seus sentimentos, de tudo ao seu redor. Nada é como você imaginou.
Antes de começar a recuperação, e até hoje, ler blogs sobre pessoas em recuperação e usar o Instagram para ver a tag edrecovery é uma parte da minha vida diária. Isso deu forma a muitas das expectativas que eu tinha em relação à recuperação. Eu pensei que eu comeria refeições coloridas em pratos bonitos, usando talheres bonitos com inscrições como Eat it to beat it e postando imagens inspiradoras. Eu pensei que tiraria foto de tudo o que comesse e manteria o controle de absolutamente tudo o que tocasse minha boca. Eu pensei que comeria todas as minhas refeições no mesmo horário todos os dias, e que seria super magra e frágil, me desafiando com um éclair em um café toda semana, e que minha família comemoraria minhas vitórias pequenas comigo. Mas a realidade não é nada disso, e isso é frustrante.
É frustrante porque é tudo o que eu via. Refeições bonitas e desafios em cafés era tudo que eu via nesses blogs. Em suas bios, escrevem quantas vezes foram hospitalizados, qual foi o seu menor peso ou IMC, quantas vezes tiveram que ser alimentados por tubo, por quantos anos estiveram doentes. Eu me sentia como um fracasso, porque esperava ser assim e era inevitável comparar. Mas nunca atingi um IMC de 12. Nunca fui hospitalizada. Eu nunca fui alimentada por tubo. Meu transtorno alimentar só se tornou muito ruim em 2015 e eu comecei minha recuperação no início de 2016. Eu nunca fui à academia. Eu nunca me pesei todos os dias, porque eu sequer tenho uma balança em casa.
"Eu nunca fiquei doente, nunca fui doente o suficiente, tenho de piorar antes de me recuperar." A voz na sua cabeça dizendo que você não está doente o suficiente porque você não se encaixa na ideia da mídia de uma menina anoréxica ou porque você não é extremamente magro e que a sua recuperação confusa não é válida é, na verdade, a sua doença tentando manter você refém. A realidade de uma recuperação de um transtorno alimentar está longe de ser o que nós sonhamos e do que é mostrado. As fotos em blogs e redes sociais não contam as histórias inteiras e, de fato, glorificar a hospitalização como forma de validar experiências é prejudicial. É a voz da doença, mas para nos recuperar, temos de lutar contra ela.
Está tudo bem se seu IMC mais baixo não for tão baixo quanto o de outras meninas. Tudo bem se você nunca foi hospitalizado. Tudo bem se você não acompanha cada pedaço de comida que coloca na sua boca. Tudo bem se você não tira fotos, se você não fizer "fear food challenges" toda semana, tudo bem ser proativo em direção à recuperação. Tudo bem se você chorar porque não tem as respostas, e está tudo bem se for difícil para você acreditar que as coisas vão mudar. Tudo bem se você não conseguir "confiar no processo" às vezes. A recuperação não é uma imagem bonita, não é um cenário perfeito, e não há fórmula perfeita para fazê-la. Não é como nos filmes, nem como o que vemos na internet.
A recuperação dói. Dói ir contra o que se tornou sua natureza. Dói ir contra o que se tornou a sua única maneira de se sentir seguro, de ter um objetivo, de acreditar que um dia você vai gostar de si mesmo. Dói perceber que as respostas que você teve eram mentiras, e que, na verdade, não há resposta. Dói se sentir como um bebê novamente, abrir mão da sua liberdade e permitir que outra pessoa lhe diga o que fazer e o que é certo e errado. E dói perceber que a imagem na sua cabeça não é realmente como as coisas são na realidade. Você não tem que validar sua experiência através do cumprimento dos padrões de outra pessoa. Sua experiência já é válida. Já está aí, já está acontecendo.
E o que mais dói sobre a recuperação, mas também o que a faz tão empoderadora e especial, é perceber que, embora haja pessoas lá fora para ajudar, você tem que salvar a si mesmo. É a sua vida, é sua escolha, é sua responsabilidade. É sua escolha ser honesto em vez de mentir, é sua escolha ser teimoso e lutar contra a voz em sua cabeça. Dói porque é difícil assumir a responsabilidade por suas próprias ações. É difícil planejar sua recaída todas as noites, mas ainda encontrar forças para o café da manhã na manhã seguinte. Mas você tem que fazer o seu melhor. E de alguma forma, de alguma forma, tem que continuar acreditando que as coisas vão mudar e que você merece uma vida melhor que a que conhece.
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